Ganhar ou perder, mas sempre com democracia: revisitando o movimento conhecido como “Democracia Corinthiana”.

Nos anos 1980, em pleno regime militar brasileiro, a Democracia Corinthiana, criou um dos principais movimentos de resistência ao autoritarismo.

Há quem diga que o futebol nada mais é que “22 pessoas correndo atrás de uma bola”. Embora essa afirmação seja parcialmente verdadeira, podemos observar, ao longo da história desse esporte, ocasiões onde o que acontece dentro das 4 linhas transcende para além do campo e do estádio. Em 1969, por exemplo, uma guerra civil que acontecia na Nigéria foi interrompida pelo Santos de Pelé: o governo nigeriano da época declarou cessar-fogo na cidade de Benin City para ver o lendário time do Santos jogar uma partida contra um time local. Outro evento histórico é a “Trégua de Natal”, um armistício de um dia entre tropas inglesas e alemãs na Primeira Guerra Mundial para jogar futebol.

Exemplos para ilustrar o diálogo entre futebol e política, história ou sociologia não faltam, e por isso o tema abordado hoje será a Democracia Corinthiana. Para falar sobre esse movimento, que abarca os anos de 1981 a 1985 do Sport Clube Corinthians Paulista, precisamos falar também sobre o contexto brasileiro. Durante a primeira metade dos anos 1980, o Brasil se encaminhava para o fim da ditadura militar. Na época, diversos movimentos clamando pelas Eleições Diretas e por uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita já ecoavam pelo país e tomavam as ruas.

É nesse cenário de insurgência e revolta que nasce a Democracia Corinthiana. No início de 1982, após péssima campanha nos campeonatos do ano anterior e atravessando uma crise econômica (reflexo da situação nacional), o Corinthians nomeia para o cargo de diretor esportivo o sociólogo Adílson Monteiro Alves, figura fundamental para o desdobrar dos acontecimentos. Adílson não tinha grandes experiências na área de gestão do esporte e era conhecido por ser um entusiasta dos movimentos progressistas e de autogestão, pensamentos completamente atípicos para o cenário tradicional de futebol na época.

Outro ponto fundamental para a equação está nos atletas do clube no momento: Sócrates, o grande responsável pela imagem da Democracia Corinthiana e um dos líderes do time, está na lista dos maiores e melhores meio-campistas de todos os tempos, também se formou em medicina enquanto jogador de futebol e era extremamente politizado e crítico ao regime da época (Vale contar que após esse período no Corinthians, Sócrates se auto exilou na Itália até o fim da ditadura. A escolha do país, segundo o próprio jogador, foi para “ler Gramsci em sua língua original”). Além dele, outros líderes do elenco eram Casagrande, conhecido até hoje por seus pensamentos progressistas e por ser um crítico aberto do governo atual, mesmo trabalhando como comentarista na TV Globo, Wladimir e Zenon. Esses 4 jogadores, junto com Adílson, lideraram o movimento interno no Corinthians e foram responsáveis pela construção da ideologia da Democracia Corinthiana após os fiascos esportivos de 1981.

Nesse contexto, a Democracia Corinthiana surge dentro de duas crises: a nacional, uma vez que o país atravessava um momento de agitação social com o enfraquecimento do regime militar, e a esportiva dentro do clube, com trocas na diretoria e péssimos resultados em campo. Então, a reformulação proposta em conjunto da diretoria de futebol, liderada por Adílson, com o corpo de jogadores foi simples e direta: todas as decisões esportivas como contratações de novos jogadores, escalações para jogos, além de decisões administrativas (período de férias, necessidade de se concentrar em hotel 1 dia antes dos jogos) eram votadas coletivamente entre todos os funcionários do clube: jogadores, diretoria, comissão técnica e staff (roupeiros, massagistas, cozinheiros), todas as pessoas que trabalhavam no Corinthians tinham o mesmo direito de um voto por decisão. Esse modelo de gestão era completamente revolucionário para a época, dado que todos os clubes sempre tiveram uma hierarquia bem definida, e foi amplamente divulgado pelos jogadores em entrevistas e declarações para a imprensa. Considerando que a democracia ainda não havia se estabelecido no país e que o Corinthians é um clube com 30 milhões de torcedores apaixonados, se denominar e se propor a ser democrático em um campo popular como o futebol dentro do contexto da época foi revolucionário.

Aos poucos, a maior torcida organizada do time e uma das maiores do país, a Gaviões da Fiel, começou a adotar esse discurso. Até então não haviam grandes episódios de torcidas de futebol politizando discursos ou propondo uma arena de debate público. Acalorados pelos discursos dos jogadores, uma torcida de proporções gigantescas começou a se colocar enquanto voz de protesto na ditadura brasileira e participar de protestos nas ruas pela democracia. Os jornais esportivos, dentro do limite pela censura da época, reportavam as ações dos times e cada vez mais os torcedores compravam o discurso. Isso se deu também pela virada nos resultados da equipe desde a adoção desse modelo. Já em 1982 o Corinthians se sagrou campeão paulista e chegou às semifinais do campeonato brasileiro. Ainda nesse ano, Sócrates, que era a figura que mais representava a Democracia Corinthiana, fez parte do que muitos acreditam ser uma das melhores seleções brasileiras de todos os tempos. O meio campo de Sócrates, Falcão, Cerezo, Zico e Éder encantou o mundo na Copa do Mundo daquele ano e até hoje é tido como referência do futebol arte.

Em 1983, após o auge da Democracia Corinthiana, no cenário nacional começava a se estabelecer o movimento das Diretas Já!, que exigiam eleições nacionais e o fim da ditadura. O Corinthians, articulado pelos líderes já citados, foi o único time a adotar esse e outros lemas nas camisas de jogos e em bandeiras, faixas e gritos de torcida. “Dia 15, vote”; “Diretas Já!”, “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” e “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia” foram alguns dos lemas mais propagados pelos jogadores, ainda no período de regime fechado.

A relação entre futebol, um esporte de massas e o mais popular do país, com o campo político esteve extremamente conectada durante esse período. As ações internas de gestão do time e o comportamento dos jogadores e torcida eram um reflexo dos anseios, pensamentos e vontades do Brasil. Não à toa até hoje a Gaviões da Fiel é uma torcida que se coloca no debate público e constantemente aparece em manifestações políticas. Inclusive alguns dos protestos anti fascistas que aconteceram no Brasil esse ano foram liderados pela Gaviões, embora dessa vez o Corinthians não tenha se aproximado desse posicionamento.

 

Texto escrito por: Marcos Palmeira de Souza

Bibliografia: https://www.cbf.com.br/selecao-brasileira/torcedor/jogos-inesqueciveis/selecao-de-1982-a-equipe-que-encantou-o-mundo

https://www.ludopedio.com.br/v2/content/uploads/Monografia_Gabriel-Assis-Farias.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Democracia_Corinthiana

https://catracalivre.com.br/cidadania/gavioes-e-outras-torcidas-fazem-protesto-antifascismo-na-paulisa/

Na final do campeonato paulista de 1983, o Corinthians entrou em campo com a faixa “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”.
Na final do campeonato paulista de 1983, o Corinthians entrou em campo com a faixa “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”.
11 de fevereiro de 1979, em um jogo de Corinthians x Santos, a torcida entrou com uma faixa escondida no estádio, com os dizeres “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Time e torcida sempre caminharam juntos durante os anos da Democracia Corinthiana
11 de fevereiro de 1979, em um jogo de Corinthians x Santos, a torcida entrou com uma faixa escondida no estádio, com os dizeres “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Time e torcida sempre caminharam juntos durante os anos da Democracia Corinthiana

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